(f) Ficção
(continuação)
Com o sentimento comum de quem queria abandonar aquele hospital, transformado súbita e simultaneamente numa sala de audiências e no cárcere da angústia provocada pela sentença pronunciada pelo médico, o mais depressa possível, pai e filho entraram no elevador. O filho questionou o pai enquanto tentava localizar o botão que lhes desse acesso à saída.
Filho – Já não me lembro, a saída é no zero ou no menos um?
Pai – É no menos um. Irónico, não é?
O filho lançou ao pai um olhar de interrogação.
Pai – Ter de descer tão baixo para encontrar a saída...
O elevador começou a descer. Nenhum dos dois sabia o que dizer. Uma vez mais os olhares não se cruzaram, o medo de se encararem tolhia-lhes a vontade imensa de se abraçarem. Sem o exteriorizarem ambos sentiam culpa e remorsos. Mas apenas procuravam, a todo custo, que as lágrimas não denunciassem a fragilidade daquele momento, um turbilhão de pensamentos e sentimentos que não lhes permitiam qualquer espaço para alguma lucidez.
Subitamente, entre o quarto e o terceiro andares, o elevador estremeceu com brusquidão e parou.
Pai – O que foi isto?
Filho – Foi a porcaria do elevador que deve ter encravado. Só faltava mais esta!... E eu com tanta coisa para fazer.
Pai – Eu já não posso dizer o mesmo…
Com indisfarçável transtorno o filho percebeu que as palavras que lhe saíam da boca não tinham qualquer sentido para quem percebia pela primeira vez que o efémero é a mais constante e imediata condição da vida.
Desesperado começou a bater nos botões gritando pelo intercomunicador:
Filho – Está aí alguém? Está aí alguém? Estamos fechados no elevador! Ajudem-nos!
A resposta foi o silêncio, do outro lado não se ouvia mais do que um pequeno ruído quase imperceptível. Permaneceram imóveis virados para a porta, não ousando sequer olhar-se nos olhos. Numa nova tentativa o filho insistiu, desta vez mais alto, como se o volume da voz fosse determinante para serem socorridos.
Filho – Está aí alguém que nos possa tirar daqui? Estamos fechados no elevador! Ajudem-nos! Ajudem-nos, por favor!
De novo, foi o silêncio a tomar conta do elevador. Pai e filho continuavam virados para a porta como se esperassem que esta se fosse subitamente abrir e transpondo-a se pudessem libertar daquele pesadelo. O medo de se enfrentarem olhos nos olhos misturava-se e confundia-se com a sensação de impotência de enfrentar a realidade. Pela primeira vez não tinham como fugir um do outro.
Ao fim de algum tempo o pai interrompeu o silêncio.
Pai – Foi a primeira vez que te ouvi pedir ajuda.
Filho – Se calhar foi porque nunca paraste para me ouvir. Afinal estavas sempre cheio de trabalho.
Pai – Estava cheio de trabalho para te dar aquilo que nunca tive. Uma vez mais sou o culpado de tudo. Essa tua resposta era mais que previsível, sais à tua mãe.
Filho – Não comeces. Se não fosse a minha mãe não estaria aqui neste momento.
Pai – Tiveste pena de mim, foi?
Filho – Apenas acedi ao pedido da mãe.
Pai – Acedeste ao pedido da mãe… vocês são todos iguais! Se fosse eu que te pedisse…
Filho – Mas tu alguma vez me pediste alguma coisa?
A discussão começou a subir de tom. O pai virou-se para o filho e puxou-o pelo ombro obrigando-o a olharem-se de frente.
Pai – E tu alguma vez me ouviste? Alguma vez deste importância aos conselhos que te dei? Alguma vez fizeste aquilo que te disse? Tu sempre tiveste a mania que conseguias tudo sozinho. Tu nunca passaste dum garoto mimado que sempre teve tudo sem fazer nada por isso, sem merecer, tu não sabes o que é a vida! Eu sempre soube o que era melhor para ti!
Filho – Quem disse? Quem disse que eu queria tirar uma porcaria dum curso? Quem disse que eu queria passar o resto da vida a usar fato e gravata? Quem disse que eu queria perder o meu tempo em reuniões com clientes, a fazer orçamentos, a correr dum lado para o outro? Foste tu que me obrigaste a ser o que eu não quero! A ter esta vida de merda só para tu dizeres que tens um filho engenheiro! Tu nunca quiseste o melhor para mim, tu sempre quiseste o que achavas que era melhor para mim.
Pai – E o que querias, diz lá? Passar o resto da vidinha com o papá a sustentar-te porque te julgavas um artista? Querias viver dos rabiscos, era? Nunca vi ninguém a comer sem trabalhar. Os únicos pintores que eu conheço que vivem do seu trabalho são os que pitam paredes e prédios e o raio que os parta!
Filho – Vês como és mesquinho, vês? O dinheiro, sempre o dinheiro!
Pai – O dinheiro não, uma vida digna, de trabalho! Tu sabes lá o que eu sofri para manter um casamento que te desse uma família normal! Mas o que é que tu sabes dos sacrifícios que fiz toda a vida para te dar o melhor?
Filho – O melhor que eu não queria, nem pedi?
Pai – Tudo o que eu te dei foi para teu bem!
Filho – Deixa de ser hipócrita, eu não pedi para nascer!
Pai – Era minha obrigação dar-te uma educação decente, princípios. Tu não sabes o que é ser pai…
Filho – Chamas princípios a obrigar-me a fazer o que não queria?
Pai – Tu tens um grande problema, não consegues ir além do teu umbigo. Escuta lá, o que é que tu deste para mereceres o que tens?
Filho – E tu, o que é que me deste para me exigires alguma coisa? Estavas sempre ausente, nunca podias!
Pai – Cala-te, não me faltes ao respeito que ainda sou teu pai!
Filho – És meu pai, mas não és meu dono!
Instintivamente o pai levantou a mão como se lhe fosse bater.
Pai – Cala-te! Cala-te! – gritou.
O filho não contendo as lágrimas fez-lhe frente levantando a voz.
Filho – Vá bate-me, bate-me!
Como se alguém tivesse por momentos parado um filme, ficaram estáticos, mantendo as posições a que o calor da discussão os levara – o pai de mão levantada, pronto para lhe dar uma palmada, e o filho, de cabeça bem levantada, hirto, desafiador, olhando-se olhos nos olhos. Era a primeira vez que tal acontecia em muitos anos - olharem-se olhos nos olhos. Mas mais do que raiva, o que se podia adivinhar naquela troca de olhares, era ressentimento e muita amargura.
(continua)