8.24.2006

(f) Fernando Nobre



Quando a poeira destes dias incertos assenta e a espuma das horas se esfuma num fino fio de luz que se desvanece no horizonte, o que é que fica? Ficam as coisas boas, as boas acções de homens bons como Fernando Nobre, que os há...
Preocupados em procurar no passado modelos e referências, que teimamos em não reconhecer no presente e em reivindicar para o futuro, nem damos conta que homens como este são exemplos da nossa incapacidade de ver para além de nós, de transformarmos a nossa vida e o nosso talento numa dádiva de amor.
Fernando Nobre desafia o status e a lógica duma existênciazinha acomodada, insipiente, sem o sal da vida, transformando os números e as estatísticas da guerra e das catátofres em pessoas com rosto e com história, proporcionando-lhes algum consolo e conforto. E é por isso que ele e a AMI merecem aqui uma referência.



letra e música F. Gomes


quando o mar me enche os olhos
tormentos, alma calada
troco os dias pelas noites
e os livros por uma espada

ponho fé em quem confio
e atrevo-me a pedir
que não me falte a coragem
no momento de partir


perdido por cem
perdido por mil
luto com moinhos
contra o homem mais vil
se for derrotado
quero no caixão
versos de um poeta
e a espada na mão


ventos trazem cheiro a morte
dou-te a mão faço-te a cama
chamam por mim esta noite
se voltar volto sem fama

corre-me sangue nas veias
tenho Sancho e armadura
se um dia não voltar
toda a dor o tempo cura

8.13.2006

(e) Endechas a Bárbara Escrava

Letra: Luis de Camões
Música: Zeca Afonso
Cantares de Andarilho

Orfeu, 1968, LP-33 rpm



Aquela cativa
Que me tem cativo
porque nela vivo
já não quer que viva
eu nunca vi rosa
em suaves molhos
que pera meus olhos
fosse mais fermosa

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E pois nela vivo,
É força que viva.

8.03.2006

(d) Discos


Em cima do prato gira sem parar, a 33 r.p.m., um disco de vinil preto, marcado por linhas quase imperceptíveis de música e poesia. A agulha, de sensibilidade e dimensões quase capilares revela, a 33 r.p.m., os segredos gravados nos micro-sulcos em forma de espiral. Da periferia para o centro a agulha desloca-se à velocidade de 33 r.p.m., música e poesia à velocidade certa. Os discos são pedaços de vida original e tal como a vida também eles têm uma velocidade certa, um ritmo. As capas em papel grosso, quase cartão, são por vezes pequenas maravilhas gráficas que os protegem do pó e os embrulham para olhos desejosos. Enquanto escuto, como se de um livro se tratasse, miro a capa e a contra-capa, o interior, fascinado com os desenhos e fotografias, com as letras e com as dedicatórias.
A tecnologia veio dar uma preciosa ajuda, os cd’s são mais pequenos, mais fiáveis, de melhor qualidade, a vida já não se mede em rotações por minuto. Mas nem por isso deixo de ter saudades dos meus velhos discos.