2.03.2009

(f) Ficção


(continuação/conclusão)


Escondendo a cara entre as mãos, o pai começou a chorar de forma convulsiva, o que estranhamente pareceu surpreender o filho que se habituara a ver nele um homem frio, um homem que jamais deixaria que as emoções o tomassem. Mas desta vez tudo era diferente, a vida parecia desfazer-se em nada, as feridas abertas durante uma vida de equívocos pareciam mais abertas do que nunca deixando a nú as fragilidades duma relação que ambos desejavam intimamente mas para a qual nunca tinham arranjado coragem, nem espaço. E ainda havia o orgulho, um fardo que ambos carregavam e que lhes negava um simples beijo de boas noites, ou um gesto tão natural como um afago, de pai para filho, de filho para pai.

Tentando recompor-se, enxugando os olhos com um lenço amarrotado o pai deixou-se uma vez mais vencer pelo orgulho:

Pai – Tu realmente não percebes mesmo nada da vida, queres-me fazer sentir culpado de sempre ter querido para ti o melhor… mas poupa-me, poupa-me por uma vez… a minha vida está presa por um fio e tu não percebes o que eu sinto, o que é ser pai… um dia tu vais perceber…

Com os olhos rasos de água o filho soluçou algumas palavras quase imperceptíveis.

Filho – Eu vou ser pai…

Pai – O quê?

Filho – Sim pai, foi o que ouviste, vais ser avô…

Como se de repente o céu se abrisse após uma forte tempestade, aquela revelação pareceu iluminar de súbito o olhar cansado do pai que, deixando cair os braços perguntou em tom patético:

Pai – Mas como foi isso acontecer?

Entre as lágrimas que lhe corriam pela cara o filho não foi capaz de evitar um sorriso.

Filho – Ora pai, como foi?

Pai – Como foi eu sei, mas… tu não és casado…

Filho – E é preciso ser casado para fazer um filho?

Pai – Não mas… eu?... Avô?... Eu não estava nada à espera disto… eu…

Filho – Pai, eu e a Paula queria-mos muito esse filho. Já faz três anos que vivemos juntos e falta-nos qualquer coisa, sei lá. O nosso amor vai muito para além de nós, faz-nos desejar que esse sentimento se transforme nalguém de que possamos cuidar, educar, acarinhar, alguém que possa ser a prova do quanto nos desejamos…

Escondendo uma vez mais o rosto com as mão trémulas, o pai parecia tomado duma estranha alegria, um turpor que lhe fazia quase acreditar que a sentença ouvida minutos atrás não fazia qualquer sentido e que a vida valia agora mais muito mais, que tinha valido a pena todo o sofrimento, que a morte anunciada não passava dum episódio menor face à alegria da nova vida gerada, perpetuadora da sua memória e do seu sangue. E sem se conter abraçou o filho.

Pai – Desculpa! Desculpa!

O filho ficou imóvel, quase assustado perante aquela natural e óbvia manifestação de alegria do pai. Nunca o calor de um abraço lhe soubera tão bem, mas não sabia como reagir.
Beijando-o na face e apertando-o cada vez mais contra si, o pai parecia transfigurado.

Pai – Desculpa-me Pedro, eu sei que não fui um bom pai...

Retribuindo por fim o abraço, Pedro deixou-se envolver pelos braços do pai, procurando neles a protecção e o conforto que sempre desejara, que sempre tinham desejado.

Filho – Não digas isso papá, eu nunca facilitei as coisas entre nós. Eu sei que sempre quiseste o meu bem.

Pai – Não, era minha obrigação agir de outra forma mas, ser pai, para mim, foi a tarefa mais difícil que alguma vez enfrentei. O medo de errar, o medo de não te fazer feliz, o medo de ter ver crescer, o medo de te educar, de te ajudar a tomar decisões ou de aceitar as tuas decisões, fez-me afastar de ti. Ser pai deveria ter sido tão natural como respirar mas, pouco a pouco, com o acumular dos erros e dos desencontros, essa alegria imensa que vivi quando a tua mãe me disse que estava grávida de ti, foi-se transformando num sufoco, numa culpa, na minha maior culpa! Não imaginas a dor que tenho sentido durante todos estes anos…

Filho – Não sejas tão cruel contigo, tudo o que tenho, devo-to a ti! Se te censuras pelo que me deste, é a mim que censuras pelo que sou. E não creio que seja assim tão mau, pois não?

Ambos sorriram. A centelha de uma nova vida parecia ter transformar por completo um percurso tumultuoso, dando-lhes uma nova esperança, a de se amarem sem medo, no pouco tempo que lhes restava.

Pai – Eu errei muito, Pedro. E o que me pesa mais na consciência é que eu tive sempre essa percepção e nunca fiz nada para mudar o rumo das coisas.

Filho – Sabes, tu tens uma grande vantagem sobre mim, tu já tiveste a minha idade e já estiveste dos dois lados, e isso, embora eu nunca o tenha admitido, conta muito a teu favor, dá-te autoridade para me fazeres ver para além! Até parece que não sabes o que fazias quando tinhas a minha idade, quando eras simplesmente “filho”!?

Pai – Por saber é que me pesa a consciência. A irreverência pode fazer-nos genuínos mas leva-nos muitas vezes a não medir os actos ou as palavras. O que nem sempre é mau. Mau foi eu não ter tido a capacidade para perceber que esse também foi o meu caminho, é o teu caminho, e será o caminho do teu filho, do meu neto… vou ser avô… acho que ainda nem estou bem a acreditar. Não imaginas a alegria que hoje me deste!

Uma vez mais a ironia das circunstâncias parecia pairar sobre eles, transformando-os em marionetas manipuladas por um poder tão cruel quanto sublime, um poder que num momento lhes roubava a vida para logo a seguir a restituir com uma força ainda maior. Mas para Pedro, isso não chegava para lhe afastar o sentimento de medo de perder o pai. A revelação da sua paternidade transformara-se ela própria numa dor profunda, a dor de não poder partilhar com o pai, o seu filho. Pedro não conseguiu por isso evitar um profundo olhar de tristeza. Mais do que o desencontro das suas vidas, a ideia que naquele momento mais o atormentava era a de o filho poder nunca vir a conhecer o avô.
Percebendo isso o pai tentou sossega-lo:

Pai – Não fiques assim, Pedro. Vale a pena acreditar que nada foi em vão! Vale a pena viver cada momento, cada segundo, saboreando os filhos, os netos, a vida…

Pedro abraçou novamente o pai.


No dia seguinte pai e filho voltaram ao hospital. O filho caminhava lentamente ao lado do pai, amparando-o com o seu braço. Desta vez fora ele que pedira ao pai para o acompanhar. Os acontecimentos do dia anterior ainda estavam muito presentes nos seus rostos, um misto de alegria e de arrependimento, de esperança e de apreensão. Sabiam que nada podia apagar a doença do pai e a inevitabilidade do diagnóstico do médico. A realidade tinha tido o dom de os aproximar, mas a aproximação trazia-lhes agora a angústia do medo.
Desta vez o elevador não estava vazio, misturavam-se rostos com expressões com rostos indiferentes. O elevador era como a vida, suspenso por cabos, desafiando a força da gravidade.
Chegados ao consultório o pai bateu à porta. Do outro lado ouviu-se uma voz:

- Entre.

Pai – Dá-me licença senhor doutor?

Sempre amparado pelo filho, entraram no consultório mas logo se aperceberam de que o médico não era o mesmo e que por certo se haviam enganado. À sua frente estava sentada uma jovem médica com um rosto tranquilo.

Pai – Desculpe mas, parece que nos enganámos no consultório.

Médica – Como assim?

Filho – Nós procuramos o médico do meu pai.

Médica – Mas, o senhor como se chama?

Pai – Horácio Costa, senhora doutora.

Médica – Não, o senhor de facto tem consulta comigo, tenho aqui a sua ficha, os exames.

Pai – Não estou a perceber. O meu médico é o Dr. Santos…

Médica – Dr. Santos? Mas aqui no serviço não há nenhum Dr. Santos!

Pai – Como assim? Então mas ainda ontem aqui estivemos e o Dr. até me deu conta dos resultados dos exames!?...

Médica – Não, deve haver aqui alguma confusão. Os resultados dos seus exames só hoje de manhã é que ficaram prontos, como é que alguém lhos deu ontem?

Filho – Mas doutora, o médico até disse que o estado do meu pai era muito grave e que lhe restava pouco tempo de vida…

Médica – Grave? Mas o seu pai não tem nada de muito grave, nada que não se possa resolver. Deve haver aqui algum equívoco. Só pode ser um equívoco!

O pai, que por momentos ficara calado, numa fracção de segundos sentiu a percorre-lhe a memória todas as emoções das últimas vinte e quatro horas, como se uma vida inteira desaguasse num único jorro, como se o fio condutor da vida apenas tivesse uma extremidade. Olhando para trás no tempo, conseguia agora perceber com clareza o essencial, como se o mundo deixasse subitamente de ter segredos e sorrindo exclamou:

Pai – Tem razão senhora doutora, tem a razão, tudo não passou de um grande equívoco!...



FIM



Por todas as saudades que tenho, dedico esta pequena história ao meu pai, esperando ter a sorte de um dia experimentar a alegria de ser avô. Pelo menos a acreditar nos relatos dos que o são.


A quem tem a paciência de me ler, as minhas desculpas pela demora e pela falta de persistência. Esse é talvez um dos meus maiores defeitos.