12.08.2006

(m) Mãe


Eu tive duas mães, sorte a minha. Uma que me trouxe ao mundo e que me ensinou os primeiros passos. Outra que por vocação e amor aceitou o desafio de me educar e fazer crescer. Sorte a minha. A ambas amei, amo e amarei. Também elas me amaram, amam e amarão, sorte a minha. Não cabem nas palavras todos os sentimentos que a lágrima que quero reter a todo o custo encerra. Sorte a minha ter nascido filho de duas mães, ter experimentado o seu doce colo e o seu sorriso franco. Se hoje vires a tua, não digas nada, dá-lhe apenas um beijo e recebe o brilho do seu olhar, mais luminoso do que todas as estrelas do céu. Mas se já não for possivel, fecha os olhos, deixa a teimosa lágrima correr para a terra e oferece-lha como prova da tua ternura e da tua saudade.
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de Arnaldo de Matos
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a rosa que te dou
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dou-te uma rosa
sem cheiro nem cor
foi arrancada do peito
e não é uma flor
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e não digas a ninguém
tudo o que te der
o mesmo faço também
haja o que houver
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muita coisa te darei
não se toca ou se cheira
deste modo te amarei
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e com rosa sem cor
sem dizer a ninguém
simbolizo o amor

11.23.2006

(l) Lua

Mirei-te, de soslaio. Mirei-te, novamente. Uma e outra vez. Até já me tinha esquecido de ti aí em cima. Mas não sou o único! Contemplar-te com vagar é um luxo que há muito não experimento. Talvez quando os dias acalmarem. Talvez. Até lá, não te eclipses, não te vás. Continua a marcar os partos, a fazer companhia às serenatas, crescente, decrescente, minguante, cheia, pouco importa, desde que permaneças no teu lugar à minha espera.



Soneto da Lua

Por que tens, por que tens olhos escuros
E mãos lânguidas, loucas, e sem fim
Quem és, quem és tu, não eu, e estás em mim
Impuro, como o bem que está nos puros ?

Que paixão fez-te os lábios tão maduros
Num rosto como o teu criança assim
Quem te criou tão boa para o ruim
E tão fatal para os meus versos duros?

Fugaz, com que direito tens-me pressa
A alma, que por ti soluça nua
E não és Tatiana e nem Teresa:

E és tão pouco a mulher que anda na rua
Vagabunda, patética e indefesa
Ó minha branca e pequenina lua!

Vinicius de Moraes



e o meu contributo
(letra e música Filipe Gomes)


só por ti na noite, procurando em vão
um porto seguro na escuridão
não tenho medo que os baixios
me façam naufragar
só por ti eu ia a qualquer lugar

a Lua aparece, o temporal se acalma
e sinto um vazio cá dentro, na alma
cansado de ter resistido
não sei como sobrevivi
pouco depois adormeço pensando em ti

......o corpo como que morreu
......a alma como que partiu
......tu foste o lado da Lua
......que mais ninguém viu

sonho com o vento,

sonho com o mar
e algo me diz que te hei-de encontrar
talvez a próxima maré traga sinais de ti
e o vento me conte o que não vi

o Sol já vai alto, sinto-me acordar
por mais que procure não consigo encontrar
nem o barco em que naveguei,

nem o farol que me guiou
nem o meu amor que o mar me roubou


11.04.2006

Para o meu avô

obs: este post foi elaborado e é da inteira responsabilidade do Francisco





Bom dia avô.
Hoje fazes anos. São quantos anos?
Parabéns avô.

Francisco

11.03.2006

(j) José Carlos Ary dos Santos

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Poeta Castrado, Não!

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
é tão vulgar que nos cansa
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
a morte é branda e letal
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;

um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!


José Carlos Ary dos Santos



Será que ainda nos lembrávamos dele? Há coisas que nunca se esquecem...

10.21.2006

(i) Irmão (do Meio)



Também eu sou o "irmão do meio". Tive a sorte de não abrir nem fechar o ciclo, pude "aprender" com os mais velhos e "ensinar" o mais novo. O mote serve para vos falar de um dos meus "poetas da canção" preferidos. Minhas senhoras e meus senhores:

Este extraordinário contador de estórias, resumiu (sem se esgotar!) neste magnífico cd, uma obra e uma carreira sem par na música e na poesia portuguesas. Os convidados são de eleição e a fusão resulta numa atmosfera musical que Sérgio Godinho teve o mérito de nunca macular. Entre os que foram e as gerações vindoras, Sérgio Godinho é para mim uma referência, um irmão do meio que me aconchega na palavra e me embala na melodia.

No meu último aniversário, o mano Lúcio (o "irmão da ponta"), ofereceu-me o livro Uma Biografia Musical de Sérgio Godinho, da autoria de Nuno Galopim. Ainda não o li (por manifesta falta de tempo...), mas tenho a certeza que vou gostar. Quem tem uma obra com a excelência da sua, tem por certo um percurso de vida musical e humano, rico e revelador. Vivó Sérgio!

Para quem teima não esquecer, fiquem com:

O Primeiro Dia

(letra e música: Sérgio Godinho)


A princípio é simples anda-se sozinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se no silêncio e no borborinho
bebe-se as certezas num copo de vinho
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Pouco a pouco o passo faz se vagabundo
dá-se a volta ao medo dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


E é então que amigos nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que leva a peito
bebe-se come-se e alguém nos diz bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Depois vem cansaços e o corpo frequeja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso por curto que seja
apagam-se duvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


E entretanto o tempo fez cinza da brasa
e outra maré cheia virá da maré vaza
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Há coisas fantásticas, não há?

9.29.2006

(h) Homem


... contudo, continuo a acreditar nos homens. Feitos à imagem e semelhança de Deus, mantenho na bondade que cada homem revela na sua essência, uma fé inabalável. Ingenuidade, ilusão, utopia, dirão. Pode até ser, mas é esta convicção que me faz manter viva a esperança de um mundo melhor. É esta convicção que me mantém apaixonado pela vida e que me permitiu replicar a minha própria existência. O futuro do mundo depende desses pequenos homens que ajudei a nascer, bons na sua essência, depende da minha capacidade de os amar e de os compreender. Essa sociedade mais justa e mais fraterna depende por isso cada vez mais do que estou disposto a partilhar.
Só para ver o Francisco mergulhar num por sol de S. Pedro, que o avô registou na memória da máquina digital e no coração, vale a pena ser homem. Cada vez mais humanamente homem. Porque os homens são bons, na sua essência.

letra e música Filipe Gomes


Não peças p’ra entender tudo o que escreves
Há sempre algo mais que não te atreves
Posso sentir um não com indiferença
Posso sentir um não com mágoa imensa

Não peças para dar o que não tenho
Apenas te direi para o que venho
Podes contar com a força de um abraço
Nunca te deixes vencer pelo cansaço

Fazemos jogos com as palavras
Dizemos tantas coisas erradas
E o que queríamos dizer, calamos

Passamos pela vida a correr
Nem temos tempo para viver
E os nossos ideais, negamos

Não peças para dizer o que não sinto
Apenas te direi que não te minto
Quando te digo que, sou teu amigo
E em qualquer lugar, estarei contigo

Mas pede-me p’ra ser mais solidário
Não quero ser na vida um mercenário
Quero juntar a minha, à tua voz
Pois não mais serei eu, seremos nós

9.11.2006

(g) gugu dádá

foto: Francisco (aos "comandos" da sua primeira máquina, made in China)


este post é dedicado ao Gana


Quando sorri não deixa ninguém indiferente, os olhos brilham e ficam ainda maiores, duas enormes luas sem qualquer sombra de mácula ou mágua. O Miguel, empoleirado no alto dos seus 19 meses, domina como ninguém o gugu dádá, a verdadeira língua universal através da qual todos nós comunicámos um dia, uma lingua que pasme-se, nunca foi utilizada sequer para uma discussão estéril ou para uma troca de argumentos vazios. Ela serve apenas e estritamente para a sua função, comunicar sentimentos, vontades e desejos. E nós, adultos, de forma abusiva e completamente despropositada, não raras vezes procuramos tentar perceber no "vocabulário" do gugu dádá algumas das “nossas palavras”. Nada mais desnecessário, os adultos por natureza gostam de complicar.
Sei que mais dia menos dia o Miguel se vai aventurar pelo português, é inevitável. Mas confesso-vos que já estou cheio de saudades do gugu dádá e que só vou poder matar essas saudades um dia, quem sabe, se Deus me der a benção dos netos.




letra e música Filipe Gomes


o soninho já pesa nos olhos
e há um sonho que chama por ti
ó mamã vem contar-me uma estória
que eu nunca ouvi

pode ser a estória da princesa
pode ser a estória do dragão
ó mamã vem cá fica comigo
vai-te embora papão

deixa sempre uma luzinha acesa
para eu poder ver a dormir
ó meu bem dorme em paz que o papão
não torna a vir

8.24.2006

(f) Fernando Nobre



Quando a poeira destes dias incertos assenta e a espuma das horas se esfuma num fino fio de luz que se desvanece no horizonte, o que é que fica? Ficam as coisas boas, as boas acções de homens bons como Fernando Nobre, que os há...
Preocupados em procurar no passado modelos e referências, que teimamos em não reconhecer no presente e em reivindicar para o futuro, nem damos conta que homens como este são exemplos da nossa incapacidade de ver para além de nós, de transformarmos a nossa vida e o nosso talento numa dádiva de amor.
Fernando Nobre desafia o status e a lógica duma existênciazinha acomodada, insipiente, sem o sal da vida, transformando os números e as estatísticas da guerra e das catátofres em pessoas com rosto e com história, proporcionando-lhes algum consolo e conforto. E é por isso que ele e a AMI merecem aqui uma referência.



letra e música F. Gomes


quando o mar me enche os olhos
tormentos, alma calada
troco os dias pelas noites
e os livros por uma espada

ponho fé em quem confio
e atrevo-me a pedir
que não me falte a coragem
no momento de partir


perdido por cem
perdido por mil
luto com moinhos
contra o homem mais vil
se for derrotado
quero no caixão
versos de um poeta
e a espada na mão


ventos trazem cheiro a morte
dou-te a mão faço-te a cama
chamam por mim esta noite
se voltar volto sem fama

corre-me sangue nas veias
tenho Sancho e armadura
se um dia não voltar
toda a dor o tempo cura

8.13.2006

(e) Endechas a Bárbara Escrava

Letra: Luis de Camões
Música: Zeca Afonso
Cantares de Andarilho

Orfeu, 1968, LP-33 rpm



Aquela cativa
Que me tem cativo
porque nela vivo
já não quer que viva
eu nunca vi rosa
em suaves molhos
que pera meus olhos
fosse mais fermosa

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E pois nela vivo,
É força que viva.

8.03.2006

(d) Discos


Em cima do prato gira sem parar, a 33 r.p.m., um disco de vinil preto, marcado por linhas quase imperceptíveis de música e poesia. A agulha, de sensibilidade e dimensões quase capilares revela, a 33 r.p.m., os segredos gravados nos micro-sulcos em forma de espiral. Da periferia para o centro a agulha desloca-se à velocidade de 33 r.p.m., música e poesia à velocidade certa. Os discos são pedaços de vida original e tal como a vida também eles têm uma velocidade certa, um ritmo. As capas em papel grosso, quase cartão, são por vezes pequenas maravilhas gráficas que os protegem do pó e os embrulham para olhos desejosos. Enquanto escuto, como se de um livro se tratasse, miro a capa e a contra-capa, o interior, fascinado com os desenhos e fotografias, com as letras e com as dedicatórias.
A tecnologia veio dar uma preciosa ajuda, os cd’s são mais pequenos, mais fiáveis, de melhor qualidade, a vida já não se mede em rotações por minuto. Mas nem por isso deixo de ter saudades dos meus velhos discos.

7.12.2006

(c) Carlos Paredes, Mestre Carlos Paredes


Não estou bem certo, mas foi seguramente entre 91 e 94. A Aula Magna, com lotação esgotada, recebia uma vez mais (creio até que pela última vez) o Mestre Carlos Paredes.
Já marcado pela doença que o acompanharia até à morte fisica, o Mestre entrou com visivel dificuldade amparado pela mulher Luisa, companheira e cúmplice da sua arte. A fragilidade aparente marcava o seu ritmo de entrada em palco, diante duma sala interira que, de pé, aplaudia o Mestre de forma impressionante.
Carlos Paredes sentou-se, agradeceu, pediu desculpa pela demora na entrada e abraçou a guitarra, percorrendo-a de forma carinhosa com aquelas mãos enormes e desajeitadas que o seu infinito talento domara.
Durante cerca de uma hora ouviu-se a sua música e a sua respiração forte. Durante cerca de uma hora Carlos Paredes ofereceu-me a sua imortalidade e o seu génio. Para sempre, fico-lhe grato. Apetece-me ouvi-lo de novo...
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PS - imperdível o magnífico tributo de Pedro Jóia a Carlos Paredes

6.13.2006

(b) Bairro do Amor



Caía um fim de tarde estival num pôr do sol deslumbrante. A noite, "amante dos poetas", trocava o dia quente por uma amena e suave brisa vinda do Atlântico, que percorria toda a praia perfumando-a de maresia. Sentado na esplanada da barraca da Natátia, entre uma imperial fresquinha e meia-dúzia de amendoins salgados, tomava em amena cavaqueira dois dedos de conversa com um amigo de há muito. De sempre. Falávamos de, de nada em particular, o costume quando se encontram dois amigos - "o mais importante num amigo não é o que diz mas a sua presença!", era esta a posição oficial dum velho tio meio louco, com aspirações a filósofo.
Num rádio rouco soavam os primeiros acordes do "Bairro do Amor", palavras sentidas numa melodia sincopada. "Sempre admirei este gajo, tem qualquer coisa de diferente...", comentei. Não sei se a vida, se a forma, se o modo, se a palavra, se os excessos. Não sei. O que sei é que tem uma forma única de falar desta viagem, uma forma que parece quase óbvia.
Por momentos ficámos calados a ouvir "o gajo" cantar. Acabámos a imperial, o meu amigo olhou para o relógio, levantou-se e disse "tenho de ir andando, a gente encontra-se".


Bairro do Amor
(letra e música de Jorge Palma)

No bairro do amor a vida é um carrossel
Onde há sempre lugar para mais alguém
O bairro do amor foi feito a lápis de côr
Por gente que sofreu por não ter ninguém

No bairro do amor o tempo morre devagar
Num cachimbo a rodar de mão em mão
No bairro do amor há quem pergunte a sorrir:
Será que ainda cá estamos no fim do Verão?

Eh, pá, deixa-me abrir contigo
Desabafar contigo
Falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
Descontrair-me um pouco
Eu sei que tu compreendes bem

No bairro do amor a vida corre sempre igual
De café em café, de bar em bar
No bairro do amor o Sol parece maior
E há ondas de ternura em cada olhar

O bairro do amor é uma zona marginal
Onde não há hotéis nem hospitais
No bairro do amor cada um tem que tratar
Das suas nódoas negras sentimentais

Eh, pá, deixa-me abrir contigo
Desabafar contigo
Falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
Descontrair-me um pouco
Eu sei que tu compreendes bem

6.03.2006

(a) Amor Azul Água


Entre o azul do céu e o azul do mar, o azul do amor, azul água, vida, sem turvação ou desgosto, com gosto a azul, o azul que anseio que me devolvas com a mesma cor com que te o dou a beber.
Não sei se alguma vez vais ler estas palavras, se vais passar por aqui, mas a ausência do azul água nos teus olhos não impede o mar que neles vejo, azul, o azul do amor, profundo, que um dia me tornou perpétuo e que prolongou no tempo a minha memória com os dois oceanos de água, azul e sal, que tornam os dias mais felizes. É também por isso que te amo, meu amor azul água.

AQUI EM BAIXO...

letra e música de João Afonso


Aqui em baixo é tudo azul
o arco-íris é azul
e é azul a chuva quando molha
a minha casa está no mar
no fundo, bem fundo, azul
sem fronteiras a dividir corações

Aqui em baixo é tudo azul
o meu lugar é azul
em azul até dançam as areias
só se vê estrelas no mar
num silêncio todo azul
e mais as bolhas de
ar que nos rodeiam

Quando o riso tiver cor
um reflexo de calor
como pássaro liberto no teu quarto
rio amarelo interior, ondas de sal e vapor
fazem desenhos na água do teu parto

Aqui em baixo é tudo azul
a lua veste de azul
anémonas são nossas caricaturas
e se a morte for azul
e dormir no fundo mar
onde os sonos nos confiam as lembranças

Aqui em baixo é tudo azul
o arco-íris é azul
e é azul a chuva quando molha

5.23.2006

(z) Zanzibar



E como "não há duas sem três", Zanzibar! - é o nome do terceiro álbum de João Afonso, um autor/compositor/interprete notável.
É uma grande injustiça ser sobrinho de José Afonso. Não o digo por inveja (será?), mas antes porque são inevitáveis as comparações e, talvez por isso, João Afonso não tenha o lugar que lhe pertence por direito próprio na música portuguesa.
São dele algumas das mais belas canções que conheço. Canções com alma, numa voz dolente, quente, que me fazem "perder o sentido das coisas" e recordar as paisagens, as cores e os cheiros de África, onde nunca fui nem onde nunca me perdi.
A música portuguesa continua singular e valiosíssima, longe das capitalizações bolsistas e arredada das playlists que comandam as rádios, mas contudo aqui tão perto, tão à mão. Se quiseres podes tocar(-lhe). Basta que queiras.


Clandestino (cá e Lá)
(letra e música: João Afonso Lima)

Eu sou como um marinheiro, que tropeça junto ao mar
sou como um olhar cigano à volta do teu olhar

Não tenho sempre razão não serei bom inquilino
saudades só de onde em onde, não tenho pátria nem hino

iôiô... quem se perdeu, encontrou
quem partiu também chegou
clandestino cá e lá
sem saber se algum Deus há

Pelos cantos da cidade desenhei a minha casa
construía-a sobre as dunas que ficam na maré vaza

Sou como sou
basta-me o vento
leva-me a onda
tudo o que tento

Sou como sou
onde me ausento
basta-me a festa
chega-me o vento

Eu sou como um embarcado, tão depressa chega e vai
a partida é meu destino, quando a noite quente cai

5.04.2006

(x) Ximenes (x) Xanana




Nos dias que correm, incertos, somos tentados a valorizar os defeitos e os erros, e a substimar os gesto de coragem e de altruísmo. Lembro hoje dois homens que são dois exemplos de vida, duas faces da mesma moeda cunhada por tributo ao amor que ambos revelaram à sua terra e ao seu povo. Foram capazes de fazer a guerra para terem a paz, foram capazes de viver subjugados para alcaçarem a liberdade. Não acredito que não tenham vacilado, que não tenham tido a tentação de desertar, por um momento, por uma fracção de segundo. Mas as suas divisas foram a reserva mental e o alento que os levou à conquista - "amai-vos uns aos outros", "resistir é vencer" - são os sinais que adivinho nos seus olhos e o que admiro nos seus gestos.
Bem melhor seria o mundo se lhes seguissemos o exemplo e fossemos nós também capazes de fazer a guerra e sair deste torpor comodista que nos consome a vida.

(letra e música F. Gomes)



o dia amanhece
como um dia vulgar
nas ruas corre o sangue
dos que vieram
celebrar a noite
que é a cor da face
dos que tombaram
mas que não morreram
dos que tombaram
mas que não morreram

ouvem-se as vozes
dos que não calaram
que o corpo é igual
e que a alma sente
quando a morte vem
não escolhe a côr
e o chão que pisam
não é diferente
e a terra que pisam
não é diferente

(refrão)
mas há quem
da liberdade faça uma bandeira
mas há quem
p’la liberdade passe a vida inteira
sem o sol, sem o céu,
mas com a vontade
de que um novo dia nasça,
de que um homem novo nasça,
em liberdade

4.25.2006

(v) 25 de Abril


Grandola Vila Morena

(Letra e Música de José Afonso )

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade

Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade


«Daqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas:
As Forças Armadas Portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas nas quais se devem conservar com a máxima calma. Esperamos, sinceramente, que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal, para o que apelamos para o bom-senso dos comandos das forças militarizadas, no sentido de serem evitados quaisquer confrontos com as Forças Armadas. Tal confronto, além de desnecessário só poderia conduzir a sérios prejuízos individuais que enlutariam e criariam divisões entre os portugueses, o que há que evitar a todo o custo. Não obstante a expressa preocupação de não fazer correr a mínima gota de sangue de qualquer português apelamos para o espírito cívico e profissional da classe médica esperando a sua ocorrência aos hospitais a fim de prestar eventual colaboração que se deseja sinceramente desnecessária.»
.
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.
.
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VIVA A LIBERDADE! E Venham Mais Cinco...

4.23.2006

(u) Utopia


utopia…

só uma coisa te impede de me alcançar,
tu mesmo,
quando me procurando te perdes.
já tinhas pensado nisso?
não, não tinha.
sabes, não tenho tempo,
há coisas bem mais importantes!
será?
e agora que se vive Abril,
cumpriu-se?
“isto é tudo a mesma corja”
diabos te levem se te entendo,
então e as cores fortes do quadro
que me pintaste?
as canções?
as palavras de ordem?
foi tudo em vão?
era jovem e
sabes como são os jovens…
a vida transformou-me.
para pior, pelos vistos.
é isso que pensas de mim?
os teus filhos merecem muito mais!
sabes que por eles,
faço qualquer coisa…
então, o que esperas?

4.19.2006

(t) Trovante



Memórias de um Beijo

Lembras-me uma marcha de Lisboa
Num desfile singular,
Quem disse
Que há horas e momentos p'ra se amar

Lembras-me uma enchente de maré
Com uma calma matinal
Quem foi quem disse
Que o mar dos olhos também sabe a sal

[refrão]:
As memórias são
Como livros escondidos no pó
As lembranças são
Os sorrisos que queremos rever, devagar

Queria viver tudo numa noite
Sem perder a procurar
O tempo, ou espaço
Que é indiferente p'ra poder sonhar

[refrão]

Quem foi que provocou vontade
E atiçou as tempestade
E amarrou o barco ao cais
Quem foi, que matou o desejo
E arrancou o lábio ao beijo
E amainou os vendavais

[refrão]

devagar, devagar


Lembram-se? Que "Saudades do Futuro"...

O Trovante, para além de representar (para mim) uma referência maior na música portuguesa, foi o grupo português que mais vezes vi ao vivo. Recordo um celebre concerto (que o não chegou a ser) no parque de estacionamento do SOM, e que após 10 minutos foi interrompido por causa da chuva que caía sem dó nem piedade. Os moços abrigaram-se no bar (que se encontrava fechado nesse dia, por causa do concerto), e eu tive a sorte de conseguir entrar e chegar à conversa com eles. Guardo o bilhete desse espectáculo devidamente autografado pelos sete magníficos. O concerto seria "reposto" quinze dias depois no Império, e a sala não estava cheia.

4.05.2006

(s) São Pedro de Moel


Pego na bicicleta e arranco em direcção ao mar. Pedalo pela mata, por entre pinheiros bravos, acácias e eucaliptos de grande porte, inspirando em golfadas o ar forte e com aroma a terra, que anuncia a brisa marinha. Os fetos estão verdes e o musgo mal consegue esconder os míscaros que rompem o tapete verde, o mesmo que aconchegou no presépio o Deus Menino no último Natal. Procuram os primeiros raios de sol da primavera, depois das chuvas purificadoras do inverno. E eu, montado na minha bicicleta, ignoro o cansaço e pedalo ao ritmo do vento que embala ramos e folhagens, em busca do mar e da calma desta mansa praia; deste pedaço de terra com nome de santo, o mesmo que guarda as chaves do Paraíso e que tomou por sua conta, a mando do Criador, este pequeno tesouro que Ele mesmo reservou para os Homens das Fábricas de Fogo.
De repente a densa mata rasga-se e abre-se num céu azul, azul forte, azul vivo, azul suave, da cor do mar, da cor dos sonhos que perdi com a idade, mas que teimosamente me assaltam quando, dormitando, julgo dar descanso ao corpo.
Num último esforço deixo para trás o Canto do Ribeiro e subo em direcção ao horizonte. Fixo os olhos no mar, respiro fundo, esqueço quase tudo e ouço no vento a poesia de D. Diniz, de Afonso Lopes Vieira. Em baixo, a Praia Velha guarda histórias de resistência, guarda o ribeiro que atravessou o pinhal, separando com uma língua de areia o seu derradeiro encontro com o mar. Os pinheiros que bordam a orla marítima há muito que se vergaram diante deste cenário deslumbrante, contorcendo-se, rastejando, procurando na terra-mãe protecção para os dias de tempestade.
Já se avista o Farol e o Penedo da Saudade, as muralhas que protegem o promontório, e por detrás, o casario. Finalmente chego. São Pedro abre-me as portas e deixa-me entrar no Paraíso. Se pudesse, escolhia não haver tempo, escolhia este pedaço de terra e de mar para viver o que resta das estações do ano.


De São Pedro de Moel, apenas vos digo o que sinto. Não ouso ir mais além. Outros, de forma superior, escreveram, pintaram, fotografaram. Convido-vos apenas a visitarem as imagens que o Miguel Costa fixou para as gerações vindouras.

3.30.2006

Dia do Pai

Pai,
se acaso o dia nascer
antes de eu acordar,
chama-me.
quero sentir contigo
os primeiros raios de sol
da manhã,
quero que me leves
pela mão
a mostrar-me para além
do visível.
Pai,
não tenhas medo
da angústia
e da alegria
de me teres feito nascer.
e se acaso o ocaso
surgir antes da hora
esperada,
quero que saibas, filho,
que o meu amor
por ti
é maior do que tudo
o que tu possas
imaginar.
por isso,
nada ficou por dizer.

3.13.2006

(r) Rua

Antigamente… não era melhor nem pior, era diferente. A rua também era diferente. Era o local das nossas brincadeiras, era o ponto de encontro da garinada, dos putos. Havia pouco trânsito, não havia tanta preocupação com a segurança, “eram outros tempos”. A rua era o quintal entre as casas. E se na Marinha, vila industrial já com algum movimento e com gente que chegava de fora a coisa não era tão pacífica, na terra da avó Laura onde ia passar férias, a rua era nossa. Barrigadas de rua, de manhã à noitinha. Porque numa aldeia como o Alqueidão da Serra, a pacatez da sua rotina, permitia tomar a rua só para nós. A rua é nossa! Nossa! Jogar à bola, correr, brincar, sem parar, tudo nos era permitido. A equipa alinhada antes do desafio, como profissionais da bola e amadores da rua, olhares fixos no kodac: "olhó passarinho, 1, 2, 3, já está..." o diafragma abre e fecha fixando na película, para a posteridade, a pose altiva dos atletas; amadores da rua, profissionais da brincadeira.
Hoje, há parques, jardins, locais onde se pode brincar com outras condições, com outros equipamentos e com outra segurança. É diferente.
O passado já foi, o presente já era e o futuro já espreita. Não é melhor nem pior, é diferente…



Luis de Camões escreveu e José Mário Branco musicou e cantou,

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

3.08.2006

(q) Quando


Álvaro de Campos


Quando


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.




Alegações finais - de facto assim é; não tenho mais nada a acrecentar para além de reafirmar que não conheço o Sr. Álvaro de Campos. Reconheço que tudo o que diz é verdade, mas só pode tratar-se de uma coincidência.

3.04.2006

(p) Puto


O puto faz hoje anos. Apesar da idade, da responsabilidade, da queda de cabelo, do tempo que teima em passar, apesar de tudo, continua puto. Como sempre. É por isso que gosto dele. Sou teu amigo, mas se quiseres sou teu irmão. Sou teu irmão, porque os irmãos amam-se, e os amigos admiram-se. Nunca me peças para não te falar, para não te procurar, porque no fim só restam os dias que percorremos juntos.

Uma vez partiste à procura de não sei o quê. Não te perguntei, mas escrevi uma canção que nunca te cantei. Hoje que fazes anos ofereço-ta. Parabéns.

faz das fraquezas forças
das tristezas alegrias
não há mal que sempre dure
e um dia não são dias
nem vale a pena me contares
a tristeza que te vai no coração
que eu já senti nos teus olhos
a mágoa e a solidão

faz do dia de amanhã
o primeiro dos teus dias
pode ser que ele te traga
aquilo que tu mais querias
nem vale a pena me contares
o que a vida madrasta te tem traído
o caminho és tu quem escolhes
o rumo e o sentido

deixa tudo para trás
e finge que és capaz
de voltar a respirar
a vida é um engano
porque quando desce o pano
o que é que sobra de nós


faz qualquer coisa por mim
que te vais sentir bem melhor
não deixes cair os braços
pinta a vida de outra cor
não vale a pena me pedires
que tenha e sinta pena de ti
porque a flor é para a abelha
o que tu és para mim

porque quando desce o pano
o que é que sobra de nós

(o) Operário


Comemoraram-se no passado dia 31 de Janeiro, oitenta e três anos sobre a data da fundação do Sport Operário Marinhense. É justo que preste homenagem a esta colectividade, da qual sou associado há cerca de vinte anos, por tudo o que nos tem dado.
Tal como as mulheres e os homens que a têm conduzido e que lhe têm dado forma, expressão e vida, o Operário também tem tido momentos bons e menos bons. Mas nada lhe diminui o seu papel de charneira na cultura e no desporto da Marinha. Aliás, a sua história confunde-se com a história do associativismo do concelho e o seu papel na luta contra o fascismo é a marca indelével da tempera dos que o quiseram um espaço de formação e de aprendizagem.
Infelizmente não há muita informação sobre a história do Operário, internet incluída, há excepção dum trabalho efectuado por Pedro Tojeira e que pode ser consultado
no seu site.
Termino com a poesia de Arnaldo de Matos, do seu livro “A Nu”, livro esse que dedica aos amigos e ao Sport Operário Marinhense;

outros limites

por nada deste mundo
mesmo nada
te daria os meus olhos
no entanto amo-te.
por nada deste mundo
mesmo nada
te daria o meu coração
no entanto amo-te.
que faria eu
sem olhos que te vissem
sem coração que te amasse?
as realidades são o que são.
que faria eu
sem olhos sem coração
e sem ti para os usar?


2.22.2006

(n) Noite

Na noite, calam-se os silêncios, descobrem-se os segredos, vivem-se aventuras. Os mais primitivos instintos renascem, os medos e os sons inquietam, os sentidos apuram-se. O bébé inrompe em choro agudo, rasgando a noite e o descanso. Só o peito quente da mãe estremunhada lhe dá quietude e conforto para vencer o que do escuro ainda falta. Ao lado, os anjos embalam em sonhos de doçuras e travessuras outras almas cansadas. Os que se amam esgotam as últimas forças em juras eternas e caricias sem fim. Outros sofrem, gritam, gemem, vergados pelas dores do corpo que lhes consomem a alma, enquanto a doença e o medo não os leva de vencida. Cada um tem o que merece... mas a noite, essa continua a fascinar, a fazer e a dar filhos. Cada um tem o que merece... mas é bom que não esqueças que as noites foram feitas para os faróis e para as estrelas. E esses não se apagam.
Para mim as noites são sempre curtas, consomem-se depressa demais, na ansia de viver o que o dia não deixa. São como as velas, de luz trémula e sumida, esfumando-se no couto contorcido por sobre a cera derretida.
.
.
.
... e Sérgio Godinho canta a Lisboa que Amanhece como só ele sabe;
.
.
Cansados vão os corpos para casa
Dos ritmos imitados doutra dança
A noite finge ser
Ainda uma criança de olhos na lua
Com a sua
Cegueira da razão e do desejo
.
A noite é cega, as sombras de Lisboa
São da cidade branca a escura face
Lisboa é mãe solteira
Amou como se fosse a mais indefesa
Princesa
Que as trevas algum dia coroaram
.
Não sei se dura sempre esse teu beijo
Ou apenas o que resta desta noite
O vento, enfim, parou
Já mal o vejo
Por sobre o Tejo
E já tudo pode ser
Tudo aquilo que parece
Na Lisboa que amanhece
.
O Tejo que reflecte o dia à solta
æ noite é prisioneiro dos olhares
Ao Cais dos Miradoiros
Vão chegando dos bares os navegantes
Amantes
Das teias que o amor e o fumo tecem
.
E o Necas que julgou que era cantora
Que as dádivas da noite são eternas
Mal chega a madrugada
Tem que rapar as pernas para que o dia
Não traia
Dietriches que não foram nem Marlénes
.
Em sonhos, é sabido, não se morre
Aliás essa é a Única vantagem
De após o vão trabalho
O povo ir de viagem ao sono fundo
Fecundo
Em glórias e terrores e aventuras
.
E ai de quem acorda estremunhado
Espreitando pela fresta a ver se é dia
E as simples ansiedades
Ditam sentenças friamente ao ouvido
Ruído
Que a noite se acostuma e transfigura
Na Lisboa que amanhece

2.18.2006

Queria pedir desculpa a todos quantos tenham pretendido deixar algum comentário e o não tenham conseguido fazer, de forma particular ao meu amigo Valério Silva que me avisou. É que, inadvertidamente bloqueei essa possibilidade.
Valério: fico à espera do belíssimo comentário que tinhas preparado (palavras tuas)...

2.15.2006

(m) Monsenhor Quixote

Monsenhor Quixote é um livro de Graham Green, que classifico de absolutamente fascinante. Esta classificação é obviamente subjectiva porque resulta da minha avaliação pessoal, do meu gosto, mas a verdade é que gostamos de partilhar com os outros aquilo que também nos deu e dá mais prazer.
Este foi seguramente um dos livros que mais me marcou. De fácil leitura, a sua "densidade" resulta da forma iteligente e simple como o autor aborda um tema sobre o qual mantive dezenas de discussões com amigos, na minha juventude - comunismo e cristianismo.
.
Trata-se da história do Padre Quixote que vivia numa aldeia perdida nos confins da Espanha, uma existência simples e tranqüila, a conversar com o alcaide comunista, a ouvir as críticas do bispo, a discutir com Teresa, sua velha empregada. Um dia socorre um bispo em aflição, cujo Mercedes avariara na estrada. Levou-o para casa no seu pequeno e velho carro a que dera o nome de Rocinante, em memória ao cavalo do seu famoso ancestral, Dom Quixote. A partir desse momento, toda a sua vida muda. O livro é um diálogo profundo e fascinante entre comunismo e cristianismo, Cristo e Marx, amor e obediência, fé e dúvida. As aventuras vão-se sucedendo e como na história do Cavaleiro de La Mancha, tudo conduz a um final trágico, faltando apenas queimar as obras de cavalaria de monsenhor, como Sancho chamava aos livros da preferência de Monsenhor Quixote, livros que falavam do amor a Deus, de São Francisco de Sales, Santo Agostinho. No final, Sancho descobre a grande verdade: que o ódio se desvanece com a morte, enquanto que o amor persiste e cresce. Mesmo depois da morte.
Se quiserem, fica a sugestão.

2.07.2006

(l) Livros

Os livros contam-se entre os meus melhores amigos - estão sempre disponíveis, ensinam-me o mundo, contam-me segredos, alargam-me os sonhos, mostram-me os outros, falam no silêncio, levam-me onde nunca estive, deixam-me partir sem perguntar porquê. A estima que lhes tenho é tão só a única forma de retribuir o tanto que me dão. Tivesse-me Deus dado o talento e o dom, e eu mesmo os faria nascer. Como filhos que se amam. Assim tonho-os apenas por amigos, o que já não é nada pouco.
E tu, há quanto tempo não visitas um amigo destes?

1.25.2006

(j) José Mário Branco


(...) Sou português, pequeno burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto.
(FMI)


Era assim que José Mário Branco se descrevia em Fevereiro de 1979, e foi assim que o conheci, meados da década de oitenta, no sotão da casa dos pais do amigo Pedro Granja. Madrugadas memoráveis em que, um grupo de rapazolas, ouviamos boa música, tocávamos mal, discutiamos muito, sem que nunca chegássemos a qualquer conclusão para além da certeza da amizade que nos unia e que apenas por pudor não chamo simplesmente de, amor...
A música de JMB era fascinante, as letras perfeitas e incisívas. Ele ousava desafiar, pelo canto e pela palavra, tudo e todos. E para nós, ao tempo jovens sofregos por afirmarmos o nosso carácter e a nossa autonomia intelectual, ele era perfeito. Coisas da juventude...
JMB é um daqueles casos em que um homem maior, um homem de cultura, é ostensivamente esquecido em resultado do seu percurso de vida e das suas opções políticas. É contudo aí que, para mim, reside o segredo da força da sua obra. Música, teatro, cinema, são caminhos que percorre de forma diferente e genial, para gozo de uns e para desconsolo de outros, dos instalados.
Termino com a canção "O Papão do Anão", faixa 8 do seu último trabalho "Resistir é Vencer", um cd notável. Vejam lá o que é que isto faz lembrar;
.
.
O PAPÃ DO ANÃO
(letra e música: José Mário Branco)
.
O papão do anão
É o anão do próprio anão
O pior p'rò anão
É ter um irmão menor
É ter um irmão maior
É ter um irmão...
.
Só de costas o anão é parecido
Com o menino que pode ter sido
.
Os anões não se medem aos palmos
Eu sou o melhor
Eu sou o maior
Quero ser
Hei-de ser sempre o mais pequenino
Estreitinho
Maneirinho
Que há-de haver
.
Propriamente ser anão não custa puto
O que custa é manter esse estatuto
.
O papão do anão
É o anão do próprio anão
O pior p'rò anão
É ter um irmão menor
É ter um irmão maior
É ter um irmão melhor
O pior p'rò anão
É ter um irmão...
.
Ser anão não é coisa do corpo
É forma do espírito morto
.
São anões p’ra quem tudo são palmos
Eu sou o melhor
Eu sou o maior
Quero ser sempre o mais pequenino
Estreitinho
Mirradinho
Que há-de haver
.
Propriamente ser anão não é defeito
É gostar de ser pequeno sem proveito
.
O papão do anão (…)
.
.
De facto, a canção ainda pode (e deve) ser uma arma...

1.15.2006

(p) Pai

Justifica-se um salto no abecedário até à letra “p”. Faz esta semana precisamente quatro anos que vi o meu pai pela última vez.
Tenho dele como última imagem a de um homem cansado pela doença. Guardo dele como a melhor memória, o seu amor pela família e de modo particular pelos filhos. É essa memória que me tranquiliza ao recordá-lo, a saudade de um amigo que se espera voltar a encontrar sem que nunca tenha partido. Apetecia-me cantar-lhe


um pai, é sempre um pai
p’ra toda a vida
mesmo que num dia chova
e noutro faça sol
e nem mesmo esse olhar
na despedida
é um adeus
pois dizes sempre
”até depois”

quem foi
que me aqueceu
nas noites frias de Inverno
quem foi
que me ensinou
a amar a liberdade
quem foi
que não esqueceu
as minhas primaveras
quem foi
que me ensinou
a olhar a estrelas

um pai, é sempre um pai
mesmo que um dia
eu não sinta o calor da tua mão
mas nem por um minuto
eu trocaria
mesmo nos dias maus tu foste
como um irmão

quem foi
que me guiou
nesse mar cheio de perigos
quem foi
que me ensinou
que o melhor
são os amigos
quem foi
que não esqueceu
as minhas primaveras
quem foi
que me ensinou
a olhar a estrelas

e só quando fui pai
eu percebi
todo esse amor
que sempre vi
brotar de ti

1.06.2006

(i) Índios da Meia-Praia




Estava-se nos primeiros anos após a revolução de Abril e Zeca Afonso cantava assim:

Os Índios da Meia-Praia (José Afonso)

Aldeia da Meia-Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga
Da melhor que sei e faço

De Monte-Gordo vieram
Alguns por seu próprio pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha a ré

Quando os teus olhos tropeçam
No voo duma gaivota
Em vez de peixe vê peças
De ouro caindo na lota

Quem aqui vier morar
Não traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana

Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te mudo
Chupam-te até ao tutano
Chupam-te o couro cab'ludo

Quem dera que a gente tenha
De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De esganar a burguesia

Adeus disse a Monte-Gordo
(Nada o prende ao mal passado
)Mas nada o prende ao presente
Se só ele é o enganado

Oito mil horas contadas
Laboraram a preceito
Até que veio o primeiro
Documento autenticado

Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo

E se a má lingua não cessa
Eu daqui vivo não saia
Pois nada apaga a nobreza
Dos índios da Meia-Praia

Foi sempre a tua figura
Tubarão de mil aparas
Deixar tudo à dependura
Quando na presa reparas

Das eleições acabadas
Do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas

Mas não por vontade própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua história
E o povo saiu à rua

Mandadores de alta finança
Fazem tudo andar pra trás
Dizem que o mundo só anda
Tendo à frente um capataz

E toca de papelada
No vaivém dos ministérios
Mas hão-de fugir aos berros
Inda a banda vai na estrada

Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo

(h) Humanos


Três cantores de eleição e um humano que viveu muito antes do seu tempo. Um projecto que nos revelou "as canções que António Variações nunca gravou". Para mim, com o gosto adicional de ouvir David Fonseca cantar em português.

1.05.2006

(g) Gastronomia



Não é que eu seja um "boa boca", tenho os meus pecadilhos - os mariscos, as açordas, as favas, os polvos, as lulas, as enguias e as raias, estão completamente excluídos da minha dieta alimentar e, consequentemente, dos meus prazeres da degustação. Contudo, excluídas estas "iguarias" que me causam engulhos e por que por vezes me deixam amargo de boca ao verificar o deleite de quem com elas se compraz, sou um indefectível apreciador da boa cozinha portuguesa cuja gastronomia regional se traduz numa variedade farta de sabores, aromas e cores, que me fazem pecar por gula mais vezes do que aquelas que seria recomendável. Enchidos e queijos soberbos, pão e broa abençoados, sopas divinais, peixes aromáticos, carnes suculentas, doces conventuais, divinais, celestiais, pecaminosos, viciantes, que me transformam, por via da desvirtude, no mais desprezível sacripanta. É a minha cruz. Não resisto a um caldo verde, a uma sopa de feijão com couve, de grão, de tomate, de legumes, quentinha, a um bacalhau assado com batatas a murro, a uns joaquinzinhos com arroz malandro, a uma massa de robalo, a uma caldeirada de petinga, a uma posta mirandesa, a umas lentriscas com arroz de feijão, a uma feijoada, rancho, feijoca, chanfana, rojões, vitela de Lafões, leitão da Bairrada, cabrito à padeiro, arroz de forno, galo de cabidela, morcela, de arroz, de sangue, de ir às lágrimas, espetadas da Madeira, bife à Cristal...meu Deus...
Enquanto os sentidos quiserem e o corpo não se queixar, (mas nunca sozinho!), digam lá vocês se devo resistir ou continuar a pecar?!...