1.25.2006

(j) José Mário Branco


(...) Sou português, pequeno burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto.
(FMI)


Era assim que José Mário Branco se descrevia em Fevereiro de 1979, e foi assim que o conheci, meados da década de oitenta, no sotão da casa dos pais do amigo Pedro Granja. Madrugadas memoráveis em que, um grupo de rapazolas, ouviamos boa música, tocávamos mal, discutiamos muito, sem que nunca chegássemos a qualquer conclusão para além da certeza da amizade que nos unia e que apenas por pudor não chamo simplesmente de, amor...
A música de JMB era fascinante, as letras perfeitas e incisívas. Ele ousava desafiar, pelo canto e pela palavra, tudo e todos. E para nós, ao tempo jovens sofregos por afirmarmos o nosso carácter e a nossa autonomia intelectual, ele era perfeito. Coisas da juventude...
JMB é um daqueles casos em que um homem maior, um homem de cultura, é ostensivamente esquecido em resultado do seu percurso de vida e das suas opções políticas. É contudo aí que, para mim, reside o segredo da força da sua obra. Música, teatro, cinema, são caminhos que percorre de forma diferente e genial, para gozo de uns e para desconsolo de outros, dos instalados.
Termino com a canção "O Papão do Anão", faixa 8 do seu último trabalho "Resistir é Vencer", um cd notável. Vejam lá o que é que isto faz lembrar;
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O PAPÃ DO ANÃO
(letra e música: José Mário Branco)
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O papão do anão
É o anão do próprio anão
O pior p'rò anão
É ter um irmão menor
É ter um irmão maior
É ter um irmão...
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Só de costas o anão é parecido
Com o menino que pode ter sido
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Os anões não se medem aos palmos
Eu sou o melhor
Eu sou o maior
Quero ser
Hei-de ser sempre o mais pequenino
Estreitinho
Maneirinho
Que há-de haver
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Propriamente ser anão não custa puto
O que custa é manter esse estatuto
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O papão do anão
É o anão do próprio anão
O pior p'rò anão
É ter um irmão menor
É ter um irmão maior
É ter um irmão melhor
O pior p'rò anão
É ter um irmão...
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Ser anão não é coisa do corpo
É forma do espírito morto
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São anões p’ra quem tudo são palmos
Eu sou o melhor
Eu sou o maior
Quero ser sempre o mais pequenino
Estreitinho
Mirradinho
Que há-de haver
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Propriamente ser anão não é defeito
É gostar de ser pequeno sem proveito
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O papão do anão (…)
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De facto, a canção ainda pode (e deve) ser uma arma...

1.15.2006

(p) Pai

Justifica-se um salto no abecedário até à letra “p”. Faz esta semana precisamente quatro anos que vi o meu pai pela última vez.
Tenho dele como última imagem a de um homem cansado pela doença. Guardo dele como a melhor memória, o seu amor pela família e de modo particular pelos filhos. É essa memória que me tranquiliza ao recordá-lo, a saudade de um amigo que se espera voltar a encontrar sem que nunca tenha partido. Apetecia-me cantar-lhe


um pai, é sempre um pai
p’ra toda a vida
mesmo que num dia chova
e noutro faça sol
e nem mesmo esse olhar
na despedida
é um adeus
pois dizes sempre
”até depois”

quem foi
que me aqueceu
nas noites frias de Inverno
quem foi
que me ensinou
a amar a liberdade
quem foi
que não esqueceu
as minhas primaveras
quem foi
que me ensinou
a olhar a estrelas

um pai, é sempre um pai
mesmo que um dia
eu não sinta o calor da tua mão
mas nem por um minuto
eu trocaria
mesmo nos dias maus tu foste
como um irmão

quem foi
que me guiou
nesse mar cheio de perigos
quem foi
que me ensinou
que o melhor
são os amigos
quem foi
que não esqueceu
as minhas primaveras
quem foi
que me ensinou
a olhar a estrelas

e só quando fui pai
eu percebi
todo esse amor
que sempre vi
brotar de ti

1.06.2006

(i) Índios da Meia-Praia




Estava-se nos primeiros anos após a revolução de Abril e Zeca Afonso cantava assim:

Os Índios da Meia-Praia (José Afonso)

Aldeia da Meia-Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga
Da melhor que sei e faço

De Monte-Gordo vieram
Alguns por seu próprio pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha a ré

Quando os teus olhos tropeçam
No voo duma gaivota
Em vez de peixe vê peças
De ouro caindo na lota

Quem aqui vier morar
Não traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana

Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te mudo
Chupam-te até ao tutano
Chupam-te o couro cab'ludo

Quem dera que a gente tenha
De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De esganar a burguesia

Adeus disse a Monte-Gordo
(Nada o prende ao mal passado
)Mas nada o prende ao presente
Se só ele é o enganado

Oito mil horas contadas
Laboraram a preceito
Até que veio o primeiro
Documento autenticado

Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo

E se a má lingua não cessa
Eu daqui vivo não saia
Pois nada apaga a nobreza
Dos índios da Meia-Praia

Foi sempre a tua figura
Tubarão de mil aparas
Deixar tudo à dependura
Quando na presa reparas

Das eleições acabadas
Do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas

Mas não por vontade própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua história
E o povo saiu à rua

Mandadores de alta finança
Fazem tudo andar pra trás
Dizem que o mundo só anda
Tendo à frente um capataz

E toca de papelada
No vaivém dos ministérios
Mas hão-de fugir aos berros
Inda a banda vai na estrada

Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo

(h) Humanos


Três cantores de eleição e um humano que viveu muito antes do seu tempo. Um projecto que nos revelou "as canções que António Variações nunca gravou". Para mim, com o gosto adicional de ouvir David Fonseca cantar em português.

1.05.2006

(g) Gastronomia



Não é que eu seja um "boa boca", tenho os meus pecadilhos - os mariscos, as açordas, as favas, os polvos, as lulas, as enguias e as raias, estão completamente excluídos da minha dieta alimentar e, consequentemente, dos meus prazeres da degustação. Contudo, excluídas estas "iguarias" que me causam engulhos e por que por vezes me deixam amargo de boca ao verificar o deleite de quem com elas se compraz, sou um indefectível apreciador da boa cozinha portuguesa cuja gastronomia regional se traduz numa variedade farta de sabores, aromas e cores, que me fazem pecar por gula mais vezes do que aquelas que seria recomendável. Enchidos e queijos soberbos, pão e broa abençoados, sopas divinais, peixes aromáticos, carnes suculentas, doces conventuais, divinais, celestiais, pecaminosos, viciantes, que me transformam, por via da desvirtude, no mais desprezível sacripanta. É a minha cruz. Não resisto a um caldo verde, a uma sopa de feijão com couve, de grão, de tomate, de legumes, quentinha, a um bacalhau assado com batatas a murro, a uns joaquinzinhos com arroz malandro, a uma massa de robalo, a uma caldeirada de petinga, a uma posta mirandesa, a umas lentriscas com arroz de feijão, a uma feijoada, rancho, feijoca, chanfana, rojões, vitela de Lafões, leitão da Bairrada, cabrito à padeiro, arroz de forno, galo de cabidela, morcela, de arroz, de sangue, de ir às lágrimas, espetadas da Madeira, bife à Cristal...meu Deus...
Enquanto os sentidos quiserem e o corpo não se queixar, (mas nunca sozinho!), digam lá vocês se devo resistir ou continuar a pecar?!...